quarta-feira, 12 de abril de 2017

Ato Sem Palavras, S. Beckett


ACT WITHOUT WORDS (1956)[1]

Pantomima para um ator[2].
Samuel Beckett

Tradução Marcus Mota
(Janeiro 2008)

Deserto. Luz ofuscante[3].
Um homem é lançado para o palco, vindo da direita ao fundo[4]. Ele cai, levanta-se de imediato, tira o pó de si, coloca-se em paralelo e põe-se a pensar[5].
Assovio partir do canto direito da cena[6].
Ele se põe a pensar e depois vai saindo de onde havia entrado.
De imediato ele é lançado de volta para o palco, levanta-se de imediato, tira o pó de si, coloca-se em paralelo e põe-se a pensar.
Assovio a partir do canto direito da cena. 
Ele põe-se a pensar, vai em direção do canto esquerdo da cena,hesita, avalia mais,pára, coloca-se em paralelo e põe-se a pensar.
Uma árvore pequena desce de cima, suspensa, para a superfície do palco[7]. A árvore possui um galho simples que fica a quase três metros de altura do chão[8] e na parte de cima uma moita de poucos galhos e folhas, que projeta para sua base um círculo de sombra.
O homem continua a pensar.
Um assobio vindo de cima.
Ele se vira, vê a árvore, anda na direção dela, senta-se sobre a sua sombra, olha para as suas mãos.
Uma tesoura de alfaiate desce de cima, suspensa, vindo a ficar na frente da árvore, a quase um metro do chão.
Ele continua a olhar para suas mãos.
Um assobio vindo de cima.
Ele busca com os olhos, vê a tesoura, pega o objeto, e começa a aparar suas unhas.
Os galhos se fecham como uma sombrinha, a sombra desaparece.
Um pequeno jarro d’água, no qual está afixado um grande rótulo com os dizeres “Água”, desce de cima, suspenso, até ficar a quase três metros do chão, onde permanece em atrativo balanço.
Ele continua a pensar.
Um assobio vindo de cima.
Ele busca com os olhos, vê o pequeno jarro d’água,ergue-se,anda e pára debaixo dele, tenta em vão pegar o objeto, desiste, coloca-se em paralelo e põe- se a pensar.
Um cubo grande desce de cima, suspenso, para a superfície do palco.
Ele continua a pensar.
Um assobio vindo de cima.
O homem se vira, vê o cubo, olha para ele, para o pequeno jarro d’água, pensa, anda em direção ao cubo,ergue-o, carrega-o, coloca-o sob o jarro d’água, testa a estabilidade do cubo, sobe nele, tenta em vão pegar o jarro, desiste, desce do cubo, carrega o cubo de volta de onde o havia retirado, coloca-se em paralelo e põe-se a pensar.
Um segundo cubo, menor, desce de cima, suspenso, para a superfície do palco.
Ele continua a pensar.
Um assobio vindo de cima.
Ele se vira, vê o segundo cubo,olha para ele,para o jarro,anda em direção ao segundo cubo, ergue-o, carrega-o, coloca-o sob o jarro, testa a estabilidade do cubo,sobe nele, tenta em vão pegar o jarro,desiste, desce do cubo, carrega o segundo cubo de volta, hesita,avalia melhor,coloca no chão o cubo, anda na direção do cubo grande,ergue-o,carrega-o, coloca-o sobre o menor, testa a estabilidade,sobe neles, o arranjo dos cubos desmorona, o homem cai, levanta-se de imediato, afasta-se e põe-se a pensar.
Ele ergue o cubo pequeno,coloca-o sobre o maior, testa a estabilidade, sobe neles e quando está prestes a alcançar o jarro, o jarro é puxado para cima um pouco,ficando assim além de seu alcance.
Ele desce, põe-se a pensar, carrega os cubos para o lugar onde estavam, um de cada vez, fica em paralelo e põe-se a pensar.
Um terceiro e ainda menor cubo desce de cima, suspenso, em direção à superfície do palco.
Ele continua a pensar.
Um assobio de cima.
Ele se vira, vê o terceiro cubo,olha para ele, põe-se a pensar, fica em paralelo, põe-se a pensar.
O terceiro cubo é puxado pra cima e desaparece.
Junto do jarro, desce uma corda, suspensa, com nós para auxiliar a escalada.
Ele continua a pensar.
Assobio de cima.
Ele se vira,vê a corda,põe-se a pensar,anda na direção dela, sobe na corda e quando está prestes a alcançar o jarro, a corda é solta, e ele cai de costas no chão.
Ele põe-se a pensar,procura em volta pela tesoura, encontra a tesoura, anda em direção dela, recolhe-a, vai para a corda e começa a cortar a corda com a tesoura.
A corda é puxada para cima,erguendo o homem,ele dependurado na corda, cortando-a,até romper a corda, e cair de costas no chão,largar a tesoura, levantar-se de imediato, afasta-se e põe-se a pensar.
A corda é puxada pra cima bem rápido e desaparece.
Do pedaço de corda que sobrou o homem faz um laço e tenta laçar o jarro.
O jarro é puxado para cima e desaparece.
O homem fica em paralelo e põe-se a pensar.
Ele vai com o laço em sua mão para a árvore, olha para o galho,vira-se e olha para os cubos, olha novamente para o galho,larga o laço, anda em direção aos cubos,ergue o menor, carrega o cubo e o deixa sob o galho, anda de volta na direção do cubo maior,ergue-o e o carrega, deixando-o sob o galho,tenta colocar o cubo grande sobre o maior, hesita, avalia melhor, coloca o maior embaixo, o menor em cima, testa a estabilidade disso, coloca-se em paralelo e pára para pegar o laço do chão. O galho envolve-se no tronco. O homem endireita-se, o galho em suas mãos, vira-se e vê o que aconteceu.
Ele deixa cair o laço, coloca-se em paralelo e põe-se a pensar.
Ele carrega de volta os cubos para o lugar onde estavam, um de cada vez, anda em direção ao laço, coloca-o sobre os cubos, enrodilhando-o em cima do cubo menor.
Ele se coloca em paralelo e põe-se a pensar.
Assovio vindo da direita ao fundo.
Ele pensa, e vai pra sua saída à direita.
De imediato ele é arremessado para o palco, então levanta-se de imediato, afasta-se, coloca-se em paralelo, e põe-se a pensar.
Assobio vindo da esquerda ao fundo.
Ele não se move nada.
Ele olha para suas mãos, procura com os olhos a tesoura, vê a tesoura, anda e pega a tesoura, começa a aparar suas unhas,pára, põe-se a pensa, passa o dedo na lâmina da tesoura, anda e deixa a tesoura sobre o cubo pequeno, coloca-se em paralelo, abre a gola de sua camisa, movimenta seu pescoço com liberdade, e toca nele com um dedo seu.
O cubo pequeno é puxado para cima e desaparece, levando com ele o laço e a tesoura. Ele se vira para pegar a tesoura e percebe o que aconteceu.
Ele fica em paralelo, e põe-se a pensar.
Ele vai e se senta sobre o cubo grande.
O cubo é puxado pra cima do homem. O homem cai. O cubo é puxado pra cima e desaparece.
O homem permanece onde está, seu rosto voltado para a audiência, frente a frente com ele.
O jarro desce de cima e repousa a quase um metro do corpo do homem[9].
O homem não se move nada.
Assovio vindo de cima.
Em seguida o jarro desce, balança-se atrativamente brincando bem em frente do rosto do homem.
 O homem não se move nada.
O jarro é puxado pra cima e desaparece.
O galho fica na horizontal novamente, os ramos se abrem, a sombra retorna.
Assovio vindo de cima.
O homem não se move nada.
A árvore é puxada pra cima e desaparece.
Ele olha para suas mãos.


Pano.





















[1]  Escrito em francês, 1956, com música de John Beckett, primo do autor. O texto foi publicado pela primeira vez em Paris,em 1957. Foi traduzido pelo autor para o inglês, tradução esta publicada pela Grove Press, Nova York, em 1958. A primeira performance do texto se deu no Royal Court Theatre, em Londres, em 3 de abril de 1957.NT. Todas as notas seguintes são notas do tradutor. Vali-me do texto de Collected Shorter Plays. Samuel Beckett. Grove Press, 1984. Esta é uma tradução provisória, sujeita a revisões, realizada como material de estudo para o curso de Drama Tecnique, por mim ministrado na Flórida University State, em 2008. Material integrante do site www.marcusmota.com.br. Agradecimentos ao professor Stanley Gontarski pela resolução de algumas dúvidas. Para uma visualização do texto, v. www.english.ilstu.edu/351/hypertext98/pugliese/repurposing/kpbio.html. PUBLICADO EM  Revista VIS (UnB). , v.11, p.115 - 120, 2012.  LINK VÍDEO: https://www.youtube.com/watch?v=Qb_eMMqUjTA . 
[2]  O texto original está repleto de referências e terminologia teatrais. Desde o título, onde temos ‘Act Without Words’, passando pelo subtítulo, “A Mime For One Player”. Assim, desde já se enuncia a dimensão metateatral do espetáculo, o espetáculo expondo-se como espetáculo. O subtítulo, além de ampliar a informação sobre o modo de composição do espetáculo, explicita o estilo de sua interpretação.  ‘Act’ tanto refere-se a uma das divisões de um espetáculo, segundo a dramaturgia clássica,(lembre-se que há peças de um ato só), quanto atualiza o campo de atividades,ações, atos, atuações desempenhos que corresponde exercício do ator. O projeto existente no título encontra-se presente em obras como as Lieder ohne Worte (Canções sem palavras), F. Mendelssohn, escritas entre 1830 e 1845, agrupadas em oito volumes com seis canções cada, perfazendo um total de 48 canções.
[3]  A primeira linha do texto marca o espaço de atuação e de encenação. A referência direta à iluminação indica não só à cenotécnica, mas um elemento de cena que será utilizado posteriormente.
[4]  NT. No original ‘The man’. Em razão do jogo entre determinação e indeterminação da personagem (ele não tem um nome, mas tem um nome –homem), ele é este e todos, em alguns momentos, para evitar ambigüidades pronominais improdutivas, reatualizei ‘homem’ no lugar de ‘ele’.
[5]  NT. Com a entrada do ‘anônimo ator’, enunciada no subtítulo, temos a ativação da materialidade de cena. O texto da peça é uma rubrica dos atos exibidos e dos lugares da cena. Daí seu detalhamento. Os atos da figura em cena muitas vezes se fundem com a exposição da materialidade do espaço da cena. Isso fica bem patente na recorrente da expressão “He turns aside”. A expressão poderia ser traduzida como ‘Ele se vira de lado’. Mas que lado? Para reduzir a ambigüidade,optei por traduzir por uma imagem vinda de A poética do Espaço, de Gaston Bachelard, que correlaciona o homem com a porta entre aberta. A posição do agente em cena é uma figura essa entre-abertura, pois ele nem está defronte do público, nem ao mesmo tempo completamente exposto para audiência. Ele atua e não atua, ele funde a tensão entre o ator e a personagem. Daí ele se encontrar em situação de ‘suspensão’, de ‘ponto morto’. 
[6]  NT. No original ‘left wing’. É bem marcada no texto a materialidade do teatro.
[7]  Nt. Novamente a materialidade do palco. No original temos ‘from flies’. Trata-se de vocabulário cenotécnico que designa o espaço acima do proscênio onde fica o sistema de cordas que eleva e abaixa estruturas ou objetos. Aqui traduzimos por ‘para cima’, apagando um pouco o senso técnico, mas inserindo a questão do infinito, do céu, como contra-espaço do homem, diante da potência anônima que  se manifesta em seus jogos e torturas.
[8]  NT. A materialidade da cena é acompanhada pelo detalhamento. No original temos ‘some three yards’. Yard vale 3 feets. Cada feet, 30,5 centímetros. Yard = 0,914 m. Quase um metro
[9]  NT. “a few feet from his body.”

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