domingo, 26 de março de 2017

Texto em português de um de meus primeiros textos sobre Heráclito

Gente, neste texto eu pude expressar algumas de minhas ideias sobre uma outra leitura de Heráclito, não tão abstrata, mas vendo os fragmentos como cenas, flagrantes do cotidiano de uma cidade arcaica. Apresentei um esboço desse  texto  como "Heráclito e a cidade:a dramaturgia do cotidiano nos fragmentos" no V Seminário Internacional Archai - A Cidade antiga, 2008, Brasília. Ampliei as considerações e o apresentei/publiquei  como "HERÁCLITO E A CIDADE:CULTURA PERFORMATIVA NA ARCAICA ÉFESO" no V Simpósio Nacional de História Cultural, 2010, Brasília. Anais V Simpósio Nacional de História Cultural, 2010. v. 1. p. 35-40.
A versão italiana deste texto foi publicada como  "Eraclito e la città: la drammaturgia del quotidiano nei frammenti". In: Gabriele Cornelli e Giovanni Casertano. (Org.). Pensare la città:categorie e rappresentazioni. 1ed.Napoli: Lofredo Editore, 2010, v. 1, p. 155-162.




Heráclito e a cidade:
A dramaturgia do cotidiano nos fragmentos[1].

Marcus Mota



O ponto de partida desta comunicação encontra-se no provocante ensaio Horizonte e Complementaridade, no qual Eudoro de Sousa, procurando demonstrar o paralelismo ou convergência entre mitologia e metafísica, acaba por aventar a possibilidade de “uma teoria dramática do conhecimento”, “um drama gnosiológico”[2], logo como prenúncio de um capítulo concludente da obra, este todo dedicado aos fragmentos de Heráclito.
Esta associação entre teatralidade e Heráclito é incrementada na edição que C.Kahn efetiva dos mesmos fragmentos, ao compará-los a canções corais, como as de Ésquilo, em seu movimento de descontínuos blocos de expressão articulados em recorrências, sobreposições e ressonâncias.
Em nosso caso, pretendemos ampliar e especificar a analogia, o topos Theatrum mundi[3], seguindo Ervin Goffman, para quem os atos de troca, as interações entre as pessoas em um contexto social, aproximam-se dos atos envolvidos em um evento teatral[4]. Passaremos, pois, a uma análise dramatúrgica dos fragmentos, de modo a evidenciar sua produção de referências.
O horizonte do cotidiano nos fragmentos se manifesta em na contextura observacional atualizada nos textos. Há um observador marcado ou não que apresenta fragrantes que registram diversas situações com diferentes níveis de materialidade. Há desde censura a atos de uma comunidade , como o banimento de Hermodoro por parte dos Efésios, passando pelo elenco de animais domésticos, até o foco em ciclo de eventos cósmicos, como a alternância entre dia e noite[5].
 As diferenciadas dimensões dos fragmentos veiculam um largo espectro de acontecimentos, do banal ao sublime, reunindo formas tradicionais de conhecimento como narrativas, enigmas, aforismos, que seriam depois redefinidas por um criticismo político, cosmológico e teológico,  expresso em  prosa especulativa.
A heterogeneidade dos fragmentos, porém, não culmina em uma exaustiva apropriação de objetos e conhecimentos, em um saber de todos os saberes: há um jogo entre experiências não explicitadas e outras deveras enfatizadas nos textos restantes. Entre as exclusões, temos a ausência de referência a detalhadas práticas concretas de comer, morar e artesanias[6]. Ao invés dessas práticas concretas, a existência é inserida em um ciclo de ações dormir/acordar, viver/morrer, que retomam o ciclo cósmico presente nas coisas do mundo e na natureza[7]. Mesmo a presença nomeada de profissões, ocupações, objetos, pessoas é inserida em uma instância que ultrapassa o caso particular[8].
Poderíamos então afirmar que existe nos fragmentos de Heráclito um esforço racional de, a partir de situações concretas e cotidianas, sublinhar padrões. Mas estes padrões são construídos a partir da observação, do acúmulo de experiências acessadas em um dado lugar, dentro de uma dada comunidade. É interrogando mesmo este esforço de racionalização das experiências que podemos nos aproximar da dramaturgia dos fragmentos. A explicitação da construtividade desses padrões demonstra a co-pertinência entre Heráclito e a cidade, esta não apenas como território e sim como concretas relações intersubjevas, de trocas e interações entre os cidadãos em sua comunidade[9].
Os padrões são erigidos por padrões. Um deles podemos denominar ‘interação assimétrica’[10]: em uma situação intersubjetiva os agentes possuem diferentes e muitas vezes discordantes posições diante dos eventos dos quais eles participam. Esta dimensão agonal dos encontros intersubjetivos não só é registrada nos fragmentos como também os formata: em muitas ocasiões Heráclito apresenta o contraste entre perspectivas limitadas de um grupo e uma outra considerada a melhor. Ou seja, para além da bidimensionalidade texto/sentido, vemos que os fragmentos projetam cenas nas quais se mostra o entrechoque entre atos considerados negativamente por meio de uma compreensão assumida como superior.  A perspectiva irônica conjuga ao mesmo tempo a circunscrição de atos cognitivos e volitivos de um grupo e a sobrevaloração de atos que lhe são antagônicos. Em todo o caso, há uma dependência da perspectiva irônica de um já pré-existente modo de processamento da realidade. A perspectiva irônica revela o padrão dessa antes hegemônica e inferior perspectiva para daí propor um novo olhar sobre o que existe.
Qual é o padrão de uma compreensão inautêntica ou limitada da realidade? Em diversos fragmentos temos diferentes estratégicas para se ratificar o amplo escopo da perspectiva irônica ao mesmo tempo em que se reduz a perspectiva que podemos denominar ‘comunal’. Duas delas se complementam: a do eulogia e do ritmo antitético.
Nos fragmentos eulógicos[11], há apenas afirmação e ênfase de que uma é somente a perspectiva mais eficiente para a comunidade. Este exclusivismo se faz presente no arranjo do cosmo e na excepcionalidade dos deuses. Constitui-se como norma para a vida da cidade. Qual um axioma, o que se afirma é uma diretriz, um parâmetro para os demais acontecimentos da vida social.
Para demonstrar da aplicabilidade desse axioma, temos um repertório de flagrantes do cotidiano, de situações por meio das quais a perspectiva irônica e a perspectiva comunal se defrontam. Nestes flagrantes,já se parte de desnível, de uma marcada diferença το λγου δ' ἐόντος ξυνο ζουσιν ο πολλο ς δαν χοντες φρνησιν, enquanto o logos é comum, a massa vive como se tivesse um entendimento particular.” A ‘massa’, os ‘muitos’, ‘eles’ são o outro do discurso de Heráclito. Podem ser materializados por várias formas, que efetivam o modo como assimetria é trabalhada: 1- anonimamente, marcados pelas desinências verbais e pronomes, 2- por referência a animais (bois, asnos,  porcos) e pela nomeação de seus guias (Hesíodo,Homero)[12].
As variadas formas pelas quais a perspectiva comunal se manifesta apontam para as práticas intersubjetivas mediadas pela cidade: é para a vida em comum que se dirigem as atividades econômicas e de transmissão de conhecimento. O que existe de novo é que essas práticas agora são questionadas em prol de uma diversa forma de conhecimento. É o exame das práticas sociais de continuidade da existência que é o material para a perspectiva irônica. O rebaixamento da perspectiva comunal, por sua associação a zoomorfismo e atividades reprováveis, é complementar do fortalecimento da perspectiva irônica. A heterogeneidade da cidade é representada no reduzido horizonte de seus integrantes ο γρ φρονουσι τοιατα πολλο, κοσοι γκυρεσιν, οδ μαθντες γινσκουσιν, ωυτοσι δ δοκουσι, pois muitos não entendem essas coisas, tal como as que encontram, nem mesmo aprendem depois que as conhecem, e sim o que parece pra eles.”
Desse modo, fica patente que a assimetria interacional é o fundamental do ritmo antitético dos fragmentos. Ou seja, não é na ordem do pensamento, mas na efetividade intersubjetiva que localizamos a contextura observacional que tanto alimenta comportamentos anti-modelares quanto a constituição mesma do venha a ser o padrão cognitivo melhor. A interdependência entre as perspectivas comunal e irônica situa as cenas que os fragmentos projetam.
Dessa maneira, há um estreito vínculo entre a materialidade das relações interpessoais e a chamada abstração de alguns fragmentos metacríticos, os quais parecem, em primeiro momento, discorrer sobre o conhecimento sem nenhuma relação ao cotidiano. É que a hipérbole negativa acaba por tornar quase opaco o nexo entre saber e existência. De um lado temos a pura brutalidade, a ignorância absoluta, os animais e os guias de cegos. De outro, muito afastado, encontra-se em absoluta excedência, temos um saber que tanto compreende a completa falta de conhecimento em seu oposto complementar quanto louva o conhecimento que possui.

Entre estes dois extremos – do rebaixamento da massa e da tematização de um saber superior -  temos alguns fragmentos que captam nos acontecimentos ínfimos,corriqueiros da vida algo que reúne perspectivas as vezes tão desconectadas: nos limites da cidade, nos lugares onde o foco não é a disputa pela hegemonia do saber, ali irrompe, às margens dos rios, à beira dos caminhos, a amplitude surpreendente das pequenas coisas, agora reconsideradas em sua complexidade. O foco se desloca para a relação entre observado e coisa observada: “δς νω κτω μα κα υτή, o caminho para cima e para baixo é um e o mesmo; ποταμ γρ οκ στιν εμβναι δς τ ατ, no mesmo rio não se pode entrar duas vezes[13]. A assimetria que fundamentava a intersubjetividade transforma-se na multiperspectivação que determina os acontecimentos. Os nexos não residem apenas na diferença entre os sujeitos: a divergência instaura a ordem social mesma. A reversa harmonia dos contrários não é uma decisão pessoal: ela inclui tanto a massa alheia ao que no mundo acontece quanto quem se interroga pelos acontecimentos no mundo.
Desse modo, os fragmentos comparecem como documentos de uma atividade de racionalização composta de diversos momentos – da reprovação do modo como há muito tempo a comunidade fundamentava suas crenças, a defesa de uma atividade crítica que parte da análise e refutação da perspectiva comunal, até os desdobramentos da interrogação sobre os padrões cognitivos que integram o sujeito cognoscente a sua heurística observacional. Ao fim da experiência dos fragmentos o observado integra-se ao objeto de observação διζησμην μεωυτν, busquei a mim mesmo[14].
Se pensar tudo reúne, é no espaço provido pela contextura observacional, pelas trocas intersubjetivas que se situa a atividade cognoscente. A um evento pluralizado corresponde um cógito relacional.  E em função da dinâmica social que a compreensão se viabiliza e adquire os contornos de sua expressão.
A partir disso, os fragmentos de Heráclito testemunham a intensa demanda de uma recente tradição investigativa procurando afirmar tanto o domínio de seus objetos quanto a emergente figura do intelectual, que irrompe em mútua desconfiança com a cidade. Heráclito debate com seus cidadãos, com seus colegas, com o conhecimento tradicional e consigo mesmo. E o faz partir de Éfeso[15], a cidade rica, opulenta, concruz de caminhos, que fascina e cativa médicos, sacerdotes, oficiantes de mistérios, ferreiros, músicos, arqueiros,pintores, rapsodos, escravos,matemáticos,geômetras, homens livres, soldados, governantes,juízes, boieiros, porqueiros, criadores de asnos,mineradores, garimpeiros,magos, esotéricos, sábios, andarilhos, bêbados, pastores, estrangeiros, artesãos, criminosos, cães, porcos, asnos, galinhas,piolhos,peixes,aranhas,macacos, bois e vacas,pais e filhos, mulheres,homens e crianças dormindo e acordando, dia e noite, andando pelas ruas, jogando seus jogos, percorrendo casas, templos, altares,procissões, de onde se pode ver o sol em seus ocasos e epifanias, as estrelas nos céus, as estações do ano, o odor, o som e a visão de um mundo em movimento. A cidade avança sobre suas fronteiras, o fluxo de pessoas, mercadorias e idéias aproximando e agravando identidades, posturas e saberes,enraizando radicais rupturas e renovadas curiosidades e interrogações.


Bibliografia



CASERTANO,G. “A cidade, o verdadeiro e o falso em Parmênides” in Kriterion ,116(2006):307-327.
CHITWOOD,A. Death by Philosophy: The Biographical Tradition in the Life and Death of the Archaic Philosophers Empedocles, Heraclitus, and Democritus  University of Michigan Press, 2004.
COSTA, A. Heráclito. Fragmentos Contextualizados. Rio de Janeiro:Difel,2002.
CURTIUS, E. Literatura européia e idade media latina. São Paulo :   HUCITEC,   1996.
DE CERTEAU, M  A invenção do cotidiano I.As artes de Fazer. Rio de Janeiro:Vozes,2000.
DE CERTEAU,M, GIARD,L. e MAYOR,P., A invenção do cotidiano II. Morar. Cozinhar. Rio de Janeiro:Vozes, 2002.
GOFFMAN, E. Forms of Talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981.
______. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience. 2ª. ed. Boston:Northeastern University Press, 1986. Primeira edição em 1974.
______. A representação do eu na vida cotidiana. 8ª edição, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1999.(Primeira edição em 1959.)
HANSEN,M. H. (Org).The Return of the Polis. The Use and Meanings of the Word Polis in Archaic and Classical Stuttgart:  Franz Steiner Verlag, 2007.
ISER, Wolfgang. O ato de leitura; uma teoria do efeito estético. São Paulo: 34, 1996, 1999. (2 vols.)
KAHN, C. The Art and Thought of Heraclitus. Cambridge University Press,1979.
MOTA, M “Heráclito:molduras teatrais e leitura dos fragmentos”. In:       XVI Congresso Nacional de Estudos Clássicos, 2007, Araraquara.
SOUSA, E.  Horizonte e complementaridade. São Paulo:Livraria Duas Cidades, 1975.









[1]           Comunicação apresentada ao V Seminário Internacional Archai. Brasília, UnB,2008.
[2]           SOUSA 1975:113.
[3]           V. CURTIUS 1996.
[4]           V. GOFFMAN 1974,1981,1999.
[5]           Respectivamente, fr. 121,125,3,9,13,6,120.
[6]           V. DE CERTEAU 2000,2002.
[7]           Fr. 1, 31,3675,88,89.
[8]           Fr. 52,89,125.
[9]           HANSEN 2007.
[10]          ISER 1996,1999.
[11]          Fr. 32,33,41,49,50,57,60,106,
[12]          Fr.19,20;4,37;40,42.
[13]          Fr. 60,91.
[14]          Fr. 101.

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